quinta-feira, 2 de março de 2017

O BAR (Outro conto gratuito)



Era um bar na saída para o mundo, ponto primeiro das novidades, fossem notícias ou mercadorias antecipadas pelos viajantes das distribuidoras. Era o primeiro sorvete e a última pinga ou último lanche dos sitiantes que tomavam a vila nos sábados, com suas carroças, jipes e montarias. Mesmo afastado, sobravam-lhe algumas famílias passeando nas tardes e noites quentes em busca de um copo de refresco, uma casquinha de massa ou um picolé de limão. Sobravam-lhe, também, alguns dos bebedores diários de cerveja, ou sobravam-lhe alguns dias desses bebedores de final de tarde, numa conversa sem fim, nas mesas de ferro ou em torno à sinuca.
Vivia bem o Gervásio: camarada remediado. Vivia feliz com sua Madá, ambos chegados nas primeiras derrubadas, vindos lá dos confins do Jequitinhonha, onde conheceram jaguncismo e cangaço, dos quais lhes sobraram as armas e a incumbência de limpá-las de vez em quando e usá-las menos ainda. Ele era desses tipos brancos, meio vermelho e sardento, seja por uma ameaça de albinismo ou um gene perdido daqueles holandeses que por lá estiveram; não muito alto se bem que acima da média. Ela, por outra, tinha a cor firme, dourada, da miscigenação, e as formas sedutoras mal escondidas pela saia justa e camisa de botão, apesar das três crianças que lhes completavam a família e a felicidade. E ajudava no bar, a Madá; com o pequeno grudado na saia, pois o de quintal no quintal estava, e o de rua na própria, ou na escola ou fazendo a tarefa.
Com o crescimento da cidade, o movimento aumentando, o Gervásio comentava com as gentes a necessidade de um ajudante. Que fosse bom, obediente, trabalhador e, claro, honesto; de resto não importava religião, raça ou política. Não demorou se apresentasse seu Antonio trazendo o filho meio contrariado de abandonar a roça, onde o trabalho duro era compensado pelo banho de rio, as caçadas e pescarias. Agora já livre do exército, o sítio nas entressafras, é hora de viver na cidade; se preciso for, sempre tem volta. Conhecidos de longa data, era freguês da última pinga do sábado; sem nunca reparar no moço. Aliás, todos se conheciam de data tão longa quanto possível num lugar novo daquele. Descendente de italianos, veio de mais perto: bastou viajar alguns quilômetros com a família e os poucos móveis na carroceria de um caminhão, atravessar de balsa o Paranapanema, mais um pouquinho de chão e estavam no pequeno sítio comprado da companhia colonizadora. A lida da roça serenada, mato esquecido, cafezal produzindo discreto, podia dispensar o filho.
Pouco tempo depois o bar já estava caminhando em nova rotina. O jovem servia as mesas, ajudava no balcão, preparava os pastéis, coxinhas e ovos cozidos. A Madá podia dispensar mais atenção aos pequenos e até atualizar as visitas das comadres. Gervásio observava a animação do moço, carregando engradados de bebidas, arrastando sacos de mantimentos, os pés nas alpargatas e a calça de roceiro entrando pelas nádegas redondas e salientes, lembrando Madá quando a viu pela vez primeira nas barrancas do Jequitinhonha, o saudoso rio. Era um menino bonito, o filho do seu Antonio, a força bruta de mão com a delicadeza, parecia moça forte. E o rio na cabeça convidava: agora podia dar umas fugidas com os amigos, armar barraca na beira do Paranapanema, voltar com uns tantos dourados para acompanhar a cachaça da freguesia; o plano se delineia.
O moço ocupa um quartinho roubado da despensa, com porta para o quintal, vizinho do banheiro. Nas tardes mornas, quando o sol parecia preguiçoso de ir-se embora, o moço se dava um descanso antes da correria da noite e ouvia a carretilha descendo o chuveiro e a Madá temperando a água; quietava e curtia o banho gostoso, o barulho da água descendo e levando o sabão das formas doces, das partes sagradas da cabocla bonita do patrão. O patrão ele ouvia no final da noite, faina encerrada, banho à luz do lampião, ensaboadas mais duras, água caindo e espirrando forte do corpo, crescendo nele, neles, os pensamentos e antecipações dos regaços da mulher da casa.
Decidiu-se pela pescaria. Madá e o moço tocavam o negócio. Dias e noites na beira do rio com os amigos; até esquecia o bar. Um descanso merecido, e com saldo de peixes para encher a geladeira.
Voltou adiantado.
Noite alta, chega de mansinho, intenção de não acordar ninguém, mormente quem ficou com as lidas da casa e do bar, onde arriou as traias e os peixes, caminhou mais adentro e ouviu um ruído estranho vindo do quarto, porta entreaberta descuidada, a cama rangendo fraco, a luz da lamparina mostrando o traseiro branco do italianinho subindo e descendo suavemente no meio das pernas torneadas e sedutoras da Madá. Essas coisas acontecem. Não se sabe direito como, mas acontecem. Depois, ninguém lembra como começa. Uma troca de olhares, um esbarrão, um gracejo, uma carícia roubada, um beijo, a insinuação, o convite, a oportunidade. Gervásio ficou ali parado, pasmo como um basbaque, sem saber se dava corda à indignação ou se curtia mais um pouco a visão do adãozinho em pêlo balançando os glúteos de redondice bifurcada como dois seios sem bicos. Mas a macheza do sertão falou mais alto na sua cabeça em fervura e foi às armas, sempre prontas, por costume. Esbarrou no trinta-e-oito, mas na pressa ou na inconsciência, pegou mesmo o trinta-e-dois, e com ele em punho entrou gritando no quarto, assustando o casal que saltou, ela de um lado bradando o tradicional "não é bem isso", e ele procurando desesperado a tramela da janela, quando duas balas acharam antes suas costas e o moço caiu inconsciente. Sobraram os dois, se encarando, ele com a arma quente e ela com os olhos estatelados esperando sua vez de pagar pela ofensa ao mandamento sexto. Dez segundos mostraram que a raiva só inspirava dois tiros. "Pensa nos filhos" ela grita. E ele pensou. Balbuciou duas vezes "sua... sua...", e avisou que ia dar no pé, fugir do flagrante, daí dois dias conversavam, ela ia ver, e foi. Madá correu para o cúmplice, pensando nas providências, mas nem precisou pensar muito porque os vizinhos, ouvindo os estampidos, chamaram o barbeiro, delegado calça curta. E este vendo vida na vítima, colocou num jipe e levou para o único hospital da cidade, onde tiraram o médico da cama, talvez também de seu folguedo conjugal, a fim de salvar mais um baleado.
E o dia amanheceu em paz, como diz o poeta. Porém, não muito.
O bar fechado, motivo de força maior, e a Madá parada na esquina do hospital querendo notícia do paciente, indecisa entre a vergonha e o sabor da fama inesperada, pois a cidade não falava em outra coisa. Foi operado, há que esperar, parece que vai tudo bem, vamos ver.
Dois dias depois, abre o bar um Gervásio absolvido dos cornos por lavar a honra em sangue, como exige o código das fronteiras, apresentado ao delegado que lavra a ocorrência e resolve esperar as coisas acontecerem antes de mandar o boletim viajar quarenta quilômetros, de lamaçais nas chuvas e areiões nas secas, até a sede da comarca. Não tem flagrante, trinta-e-dois não mata, deixa estar para se ver como é que fica; por enquanto, só é presa a arma do crime.
Mas a Madá segue fazendo sua peregrinação diária até a esquina do hospital, de onde manda o filho mais velho saber notícias, com medo da família da vítima, recebendo sempre a mesma resposta de que é preciso repouso e uma longa e cara convalescença. A palavra cara encareca o velho sitiante, cujo dinheiro é sempre contado para o gasto e a despesa da outra colheita, ou das culturas menores de entressafra, estando completamente desprevenido no momento. E o médico não dá alta. O moço sarou, caminha pelo quintal do hospital, novo de novo, mas não tem alta. Cansou, o doutor. Acorda no meio da noite por conta das brigas de bêbados ou libidinosos, depois fica no prejuízo, com pessoal, luz, impostos, pinturas a serem pagos por quem? Chega. Só sai se pagar. E o povo da vila lhe dá inteira razão. O banco só abre a carteira mais perto da colheita, ninguém da cidade vai custear gozo alheio. O pobre velho anda desesperado de cabeça baixa e quase tromba com a Madá em seu horário de visita, já virou visita, se encabulam, mas ele, sob o peso da angústia, abre com ela seu pobre coração de pai aflito.
Madá se condói. Há alguns dias, ela e o marido voltaram a se falar. Primeiro pelas necessidades do bar e das crianças, depois pelas necessidades maiores e incontornáveis da vida de todo mortal. Falavam e coisas mais faziam. E numa hora das boas ela apresentou o preito do velho pai do rapaz. "Não fala mais desse cara", diz o Gervásio. "Não falo, mas o fato é que ele tá lá, apodrecendo, ao invés de estar trabalhando, sendo útil". E Gervásio lembra dele trabalhando, seu pequeno corpo bailarino, branco que só leite, talvez macio como travesseiro de pena, mas belo como anjo de quadro, serpenteando as mesas e agradando os fregueses. Cede. Tudo bem, manda dizer ao doutor que paga a conta toda; mas o sujeito vai trabalhar no bar até quitar tudo, tudinho. Madá exulta, o delegado aprova, assim nem precisa processo.
Daí sim, o dia amanheceu em paz. O velho voltou tranquilo para os afazeres da roça, as crianças ganharam de volta o tio bonzinho, a carretilha do chuveiro voltou a rosnar baixinho subindo e descendo o balde de água morna, a água a escorrer pelos corpos sarados dos três que convivem sabe lá como na mesma casa, enquanto os pássaros trilam alegremente no aconchego de seus ninhos e as borboletas voejam de flor em flor.
E a freguesia do bar aumentou.



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