quarta-feira, 1 de março de 2017

O VELHO E A ÁRVORE (um conto gratuito)



O guapiruvu morreu. Não está no chão, mas está morto. Foi raio. O homem olha desolado aquele gigante que se ergue aos céus na sua frente, sem os vários galhos e folhas da copa. Tudo seco, queimado, torrado. Ele pressentiu à noite, durante a tempestade. Quis fazer como fizera muitas vezes na infância, na adolescência, na juventude: sair na tempestade, cuidar dele; na ilusão de que sua presença afastasse os raios. "Tá caduco! Sair nesta chuva prá olhar bichos! Os bichos se viram!" Ele tinha dado a desculpa de ver os bichos, se estavam bem. Todo mundo dizia que isso ia acontecer um dia. Adotou o guapiruvu quando tinha uns doze ou treze anos, não se lembra bem. Mas lembra que naquela idade se achava o mais sabido de todos; explosão de hormônios ou acordamento para o mundo, quem sabe. E todos falavam dos guapiruvus; ninguém gostava deles. "Isso atrai raio! Não pode ter perto de casa!" E por não ter perto, também não queriam longe. "Olha aqui, dizia o pai: um filhote. Tem que arrancar. Não deixa crescer". "Ele bebe bastante água; e aqui tem muita; demais até". "Isso é. Mas atrai raio; é muito perigoso. Não quero, entendeu? Larga semente, espalha muito; arranca!". E tirou a pobre mudinha do solo. Dias depois ele deu com outra muda no bananeiral. Na sua parte do bananeiral; na sua cota de cuidar. Uns cinquenta metros do rio. É uma plantinha bonita; as folhinhas pequenas e delicadas agarradinhas nos galhinhos. Devia ter sobrado do ano passado; devia ter uns dois anos. Três não tinha. Teve pena: deixou. Só ele passava por ali. Ano após ano carpindo em volta das bananeiras e dando mais um ano para o guapiruvu. Até que o pai abandonou aquele terreno todo, aquelas bananas todas, para formar um novo bananeiral mais adiante. Daí foi mais fácil, a quiçaça tomou conta, outras árvores crescem mais rápido e esconderam a jovem árvore. Muitos anos depois, passavam um dia por ali a caminho do rio, da pescaria, e o pai viu. "Ah, danado, você deixou um guapiruvu vivo, hein?" Ele, já moço, homem feito, dono de si, sorriu matreiro. O pai também sorriu. "Tá bom. Agora deixa aí, de reserva, na precisão de uma cerca ou um portão". Os anos passaram, o pai morreu; a mãe morreu; o irmão gêmeo e a cunhada também morreram; e o guapiruvu ficou. O irmão gêmeo com quem dividiu tudo, menos o guapiruvu. As roupas na infância; os livros na escola; o exército, apesar da mãe querer tirar um deles, porque o coronel disse que não precisava mandar dois filhos servir o governo. Um só era suficiente. Nenhum quis sair; dividiram o quartel um ano inteiro; um ano de guerra, de expectativa. Voltaram sem guerra e continuaram dividindo a terra, o trabalho, o rio, as casas, o moinho, os animais. Não dividiram as namoradas. Mas dividiram os filhos. O irmão gerou uma prole numerosa. Ele não, era improdutivo: casou mas não teve nenhum. Criou os do irmão: virou um tio eterno. Agora já é tio avô, muitos netos. "Sobrinhos-netos", se não fosse esta uma longa palavra. Filhos e netos do coração, não dele mesmo, como manda a natureza. Talvez por isso encarasse o guapiruvu como filho; e o pranteou como um filho. Bem agora, que ele era o mais velho, o ancião, e que ninguém mais ia mexer com a árvore, o raio a matou.
"Vai ficar aí prá sempre olhando esse tronco?" gritou a mulher. "Tem que levar as colheitas pra Antonina!" As viagens, as inúmeras viagens rio abaixo levando os produtos da roça numa canoa. Saía lotado, do portinho de casa. Os outros tinham medo. Todo mundo da vilinha levava uns dois quilômetros na carroça, até passar as corredeiras, e só então carregavam nas canoas. Alguns iam mais longe, vários quilômetros, até o rio Cacatu, mais calmo que o Cachoeira, desaguava mais adentro,na baia, antes da cidade, o que tornava mais fácil também o final da viagem. Ele, sempre teimoso; tinha que ser melhor que todos. Saía direto de casa, do seu portinho; vencia as corredeiras sem derramar uma fruta, sem perder uma galinha. Sabia remar e dar ré nos pontos certos; apontar nas quedas e ladear nos poços. Depois, era só descer o rio devagar, com calma, parando para os lanches e o descanso. Até chegar no Corisco, as pedreiras do Corisco, onde a maré da baía brigava com as águas do rio. Às vezes estava calmo, o Corisco. Mas, já virou a canoa algumas vezes; perdeu cargas de produtos ou de compras, conforme se era ida ou volta.

Essa viagem foi tranquila. Depois de uma tempestade sempre vem a calmaria. Ou quase sempre. Dessa vez sobrou a tristeza pelo guapiruvu. Saiu cedinho de casa, cinco horas descendo o rio. Subir chegava a doze. Avista o longo trapiche, as canoas, o mercado, a cidade. Rema até o trapiche e o margeia até o mercado. Encontra parentes, amigos; vende, troca, compra; "E as novidades?" Conta do guapiruvu. Um pescador-feirante ouve, se apresta, pede o tronco, precisa de uma canoa nova. Ele troca por peixe. "Essa semana ou na outra eu subo", disse o pescador. Ele, por sua vez, subiu naquele dia mesmo. Na verdade, naquela noite. Saiu da cidade no fim da luz do dia, remando na fraca Lua, pela margem. Onde a corrente era mais forte ele atravessava de esgueio. Chegou em casa com a luz bonita da alvorada surgindo no nascente. Alguns dias depois, o pescador subiu por terra, ônibus, caronas, com o filho. O menino devia ter bem a idade dele quando salvou a mudazinha frágil do guapiruvu. Acamparam no sítio, pai e filho. Dias, com machado, faca, formão, transformaram o enorme tronco em canoa. "E agora, como vai levar prá Antonina?" "Descemos com ela". "Você não é louco não?" "Menos que o senhor". Os vizinhos ajudaram, puseram a enorme canoa no rio. Pai e filho subiram e largaram. O homem ficou na margem acompanhando com os olhos as hábeis manobras do pescador. Venceu as corredeiras e foi-se. O homem ficou olhando seu guapiruvu partir para um novo destino. Morreu árvore, renasceu canoa.

Nas próximas idas à cidade, ouvia sempre notícias da canoa. Notícias do "Guapiruvu", o nome que o barco recebeu do fabricante. Era uma canoa valiosa e famosa. O dono e o filho eram líderes na pesca.
O tempo passa, os dias correm, algumas memórias se apagam, outras ficam. As descidas para a cidade foram rareando. Em parte, pelo peso dos anos, a presteza diminuindo, e o rio vencendo. Em parte, pela mudança das coisas. A esburacada trilha das carroças foi sendo alargada, virou estrada. Asfaltaram. Agora, o povo sobe em ônibus, camionetes, carros. Ninguém mais precisa descer o rio com produtos da roça. Só descem por divertimento: pesca, canoagem. Ele ainda ama o rio de todas as maneiras. Todo dia os vizinhos vêem o homem caminhar em direção ao rio. Aproxima-se da margem, observa as águas por alguns instantes como se as cumprimentasse, e volta. Cada vez mais devagar. Cada vez menos dias. Até que as caminhadas acabam, ele passa para a poltrona em frente da televisão de antena parabólica.  Depois para o leito... E, finalmente, a notícia corre: o centenário ancião, decano dos nativos, parece que vai partir. No leito, as visitas se sucedem. Inúmeros parentes, amigos, conhecidos, desconhecidos... No olhar velado pelo desinteresse divisa um jovem se aproximando, cujo rosto evoca alguma coisa escondida no fundo da alma. "Lembra de mim, velho? Sou aquele menino que veio com o pai fazer a canoa". Os olhos do velho brilham, um sorriso se desenha na face, ele sente-se fortalecer. Com a voz fraca dos que esperam na última estação da vida, ele pergunta: "E o ‘Guapiruvu’, ainda pesca?" E o jovem conta. "O pai morreu. Sabe como o pai era bom nisso. Eu continuei pescando. Nos temporais do ano passado eu bobeei. Todo mundo tremeu e voltou para a terra. Eu continuei. Não deu outra: afundei. Fui salvo pela guarda-costeira. "E o "Guapiruvu"? "No fundo do mar... prá sempre!".
O velho abandonou a cabeça no travesseiro. Olhou para o vazio. Disse um simples e gentil “Tá bom!” para o moço, fechou os olhos e imaginou o barulho do mar, o mar tantas vezes abraçado, as águas se encontrando sobre ele, e ele descendo até o fundo, onde o esperava paciente o guapiruvu; o “Guapiruvu”.
O jovem, os parentes e amigos, todos os presentes que acompanhavam seus últimos momentos, deram o suspiro de alívio, de fim de ciclo, de fim de vida, de fim de história. Ele se foi.
E como em toda a sua vida só teve filhos do coração e não da carne, não lhe ocorreu perguntar nem informar se o guapiruvu deixou descendentes.

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