terça-feira, 24 de março de 2020

SOBREVIVÊNCIA




- Conta vô, aquela história que você prometeu: de sobrevivência!
- Ah, sim. ..  Era uma vez um homem honesto e trabalhador.   Não era um milionário mas vivia bem, sustentava uma grande família: ele, a mulher, seus pais velhinhos e mais dez filhos.  Um dos meninos era bem doentinho, coitado.  O que não lhe era um problemão, porque ele podia pagar o plano de saúde e ainda dar boa vida aos demais.  Porém, num dia feio, bandidos cruéis e ardilosos tramaram contra sua felicidade.  Como todos estavam trabalhando ou estudando, invadiram sua casa e sequestraram os dois velhinhos e o menino doente.  E exigiram um pesado resgate.  Todo o seu dinheiro,  todos os seus bens, todas as suas aplicações, senão, matavam os três!  O bom homem sofreu bastante; quase teve síncope; andava pelos cantos pensando; só tinha as duas alternativas: perder tudo  ou perder os três, pois não havia como pedir socorro.  Depois de muito refletir, chamou a família e comunicou sua decisão.  Não podia pagar o resgate e comprometer o futuro de todos;  ficarem sem casa e mudarem-se para debaixo do viaduto; recolherem coisas do lixo; dar adeus à faculdade dos maiorzinhos.  Sem poder pagar plano de saúde o doentinho morreria mesmo!   Os velhinhos já tinham vivido bastante, agora só davam despesa.  Não, o melhor a fazer era avisar os sequestradores que não pagaria tão exorbitante resgate e deixar a eles a responsabilidade pelo ocorrido.  Temos que ser racionais e práticos.  E, o pior aconteceu.  Os homens maus mataram os reféns.  A família sobreviveu sem outras perdas; futuro de todos assegurado, conforto de todos mantido, sobrevivência de todos garantida.
- Nossa, vô; que história triste!
- Ora, é só uma história.
- Não aconteceu?  Você prometeu uma história real!
- Sim, aconteceu, mas foi outra coisa.
- Que coisa?
- Em 2020 apareceu um virus perigoso que ameaçou todos os idosos e os doentes da humanidade.  Não havia vacina, não havia remédio.  A única solução era paralisar tudo, toda a produção, todo o comércio, todo o consumo.  Deixar a vida em suspensão. O isolamento social para que o virus não se propagasse.  E isso tudo ameaçava destruir a economia.  A humanidade se dividiu, tal como a cabeça do pai de família.   "Se decretarmos quarentena a economia não aguenta, vai ser muito pior, vai morrer muito mais gente", diziam alguns.  "Que adianta sobrevivermos se parte de nós vai morrer?" diziam outros.  "Vamos nos unir, como náufragos no mesmo bote.  Não adianta sobrevivermos se matamos nossos valores morais"...
- E?
- Tomaram a segunda decisão: fizeram a quarentena, derrotaram o virus e recuperaram a economia, muito tempo depois, com muito esforço, suor e lágrimas, mas íntegros e com o respeito próprio preservado.
- Ufa!
- Claro, afinal, como diziam na época, a humanidade não sobreviverá se não sobreviver em nós a humanidade.

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