Há pouco tempo uma entidade de consciência negra pretendia proibir nas escolas os livros de Monteiro Lobato e crucificar o funcionário que os selecionara, acusando-o, o Lobato, de racismo porque, nas "Caçadas do Pedrinho", compara a agilidade da Tia Nastácia com a de um macaco, quando ela sobe numa árvore fugindo da onça. Como ficariam, diziam tais militantes, as criancinhas de descendência africana quando aquele texto fosse lido nas salas de aula? E não adiantava dizer que o professor aproveitaria a oportunidade para trabalhar tais valores ou desvalores; não adiantando nem mesmo mostrar, como defesa do autor, outra parte do mesmo livro em que o Lobato chama de "macacada" todas as crianças e personagens brancos da história, tornando evidente que a comparação com o nosso nobre primata se deve mais à agilidade e hiperatividade deste do que à sua cor (que nem sempre é negra, diga-se de passagem). Como sempre, poderíamos lamentar a falta de criatividade nacional, pois, tais investidas, parece, apenas repetem as que houve nos Estados Unidos contra Mark Twain e o tratamento, tornado pelos evos politicamente incorreto, que ele dá, em alguns momentos, aos amigos do seu Huck Finn.
Se formos adotar tais critérios, para sermos coerentes e imparciais, teremos que proibir nas escolas um dos principais artífices da língua pátria, nosso afro-descendente Machado de Assis. Pois se lermos com os mesmos olhos inquisitoriais as agruras do seu Brás Cubas, a partir do capítulo XXX das "Memórias Póstumas", vamos encontrá-lo lidando com o medo de uma borboleta apenas pela sua cor. Quando, finalmente, ele se deixa vencer pelos preconceitos e a mata, justifica sua consciência culpada dizendo: -"Também por que diabo não era ela azul?". E conclui que talvez mesmo azul ou laranja ela não escaparia da morte, porque ele poderia tê-la espetado para o deleite dos olhos. Vejam vocês, se é azul serve para o deleite dos olhos; como é negra, mata-se e joga-se às formigas. Qual seria a reação dos nossos paladinos se tal texto fosse de um autor branco?
Mas o "odioso" preconceito de Machado não para aí: volta-se, logo adiante, contra os deficientes físicos. A bela Eugênia (vejam a escolha do nome!) que ele começara a paquerar descontrói-se aos seus olhos quando ele descobre que ela tem um pequeno defeito na perna. "O pior é que era coxa" -- escreve o mestre do idioma -- "Uns olhos tão lúcidos, uma boca tão fresca, uma compostura tão senhoril; e coxa! Esse contraste faria suspeitar que a Natureza é às vezes um imenso escárnio. Por que bonita, se coxa? por que coxa, se bonita? Tal era a pergunta que eu vinha fazendo a mim mesmo ao voltar para casa, de noite, sem atinar com a solução do enigma. O melhor que há, quando se não resolve um enigma, é sacudi-lo pela janela fora; foi o que eu fiz; lancei mão de uma toalha e enxotei essa outra borboleta preta, que me adejava no cérebro".(!) Mais adiante, enquanto ele bendiz seus pés perfeitos ao descalçar as botas, "lançava os olhos para a Tijuca, e via a aleijadinha (!) perder-se no horizonte do pretérito". E finaliza, cruelmente, o episódio. "Tu, minha Eugênia, é que não as descalçaste nunca; foste aí pela estrada da vida, manquejando da perna e do amor, triste como os enterros pobres, solitária, calada, laboriosa, até que vieste também para esta oura margem... O que eu não sei é se a tua existência era muito necessária ao século. Quem sabe? Talvez um comparsa de menos fizesse patear (!) a tragédia humana".
Viram? Imaginem agora o drama na sala de aula onde as criancinhas negras de olhinhos arregalados e tristes pelas comparações de Lobato e Twain, vêem somar-se a isso a decepção das criancinhas com deficiência física, arrasadas pelo fato do Machado questionar até mesmo a necessidade de sua existência!
Ora, meus caros heróis da raça, não será melhor enfrentarmos o passado e seus preconceitos do que proibirmos os textos anteriores à bendita conscientização inclusiva que nos contagiou mais recentemente?
Senão, nessa paranóia proibitiva acabaremos mudos.
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